26 novembro 2010

A Guerra do Rio

Escola no Rio de Janeiro - novembro de 2010
Vale muito a pena assistir todo o documentário, mas assista ao menos o trecho a partir dos 3:00 do vídeo abaixo...



Documentário. Kátia Lund e João Moreira Salles retratam o cotidiano dos moradores e traficantes do morro da Dona Marta, no Rio de Janeiro, em "Notícias de uma Guerra Particular".

Resultado de dois anos de entrevistas (entre 1997 e 1998) com personagens que estão de alguma forma envolvidos ou vêem de perto a rotina do tráfico, o documentário contrapõe a todo o momento as falas de traficantes, dos policiais e dos moradores.

(Repassado pelo Rodrigo Cardia/Blog Cão Uivador, via Facebook)
O que a TV mostra e o que não mostra - Latuff

Texto de Roberto Pompeu de Toledo, revista Veja em 03/5/2000:
Notícias de uma guerra particular (2)
Deseja-se uma polícia honesta? Então fica combinado que o que vale para a favela vale para Ipanema 

Eu digo. Não precisa ninguém dizer. Eu afirmo: a polícia é corrupta. 

Com a palavra o delegado Hélio Luz, então chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, num dos trechos de sua marcante participação no documentário Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles e Kátia Lund. Na semana passada já se falou aqui desse documentário, hoje mais famoso do que na época em que foi lançado (1998) por causa da mesada paga por Salles a um chefe de tráfico, que conheceu nas filmagens, para que escrevesse um livro. Notícias de uma Guerra Particular, cujo tema é a guerra entre policiais e traficantes nos morros cariocas, causa aflição, de tão denso e revelador. Volta-se a ele para abordar o que ficou de fora na semana passada – o depoimento de Hélio Luz. 

"Sim, a polícia é corrupta", diz o delegado no filme, para em seguida acrescentar que, se a sociedade quer uma polícia honesta, não seria difícil consegui-lo. Conta então uma experiência que viveu num município do norte fluminense. Quando ali chegou, para assumir o posto de delegado, encontrou a população traumatizada. Havia pouco, o carcereiro se apoderara da boca-de-fumo local. Clamava-se pela moralização dos agentes da segurança pública. Luz juntou trinta policiais que, em suas palavras, "não levavam grana" e pôs-se ao trabalho. Aplausos. O delegado era convidado para os jantares do Rotary. Tudo foi bem durante dois meses até que, no terceiro, o segurança do supermercado estapeou um garoto apanhado furtando. Foram autuados os dois. Um por furto, outro por agressão. O dono do supermercado protestou, em favor do segurança: "Mas, doutor, era um ladrão..." O delegado começou a ser visto como bicho estranho. Hélio Luz data daquele momento o fim da lua-de-mel da sociedade local com a moralidade. Os convites para jantar escassearam. Deu-se então que um fazendeiro matou um rapaz que lhe levara o toca-fitas do carro. "Aí pronto", diz Luz. "O que era bom deixou de ser." Não se suportou a incriminação do fazendeiro. Não se agüentava mais tanta moralidade. 

Luz defende que a polícia é corrupta porque convém à sociedade. Deseja-se uma polícia honesta? Então, o que vale para a favela passa a valer para o Posto 9. "Não pode cheirar em Ipanema", diz. "Vai ter pé na porta na Delfim Moreira." Pé na porta, o leitor sabe, é como a polícia invade os barracos nas favelas. Hélio Luz sugere a extensão do método aos prédios chiques do Leblon. E pergunta: "A sociedade vai conseguir segurar isso?" A pergunta fica nos ouvidos. A sociedade segura isso? 

Uma questão não enfatizada com a atenção devida, quando se fala em narcotráfico, é a do contrabando de armas. No documentário de Salles e Lund desfila uma profusão de armas, nas mãos tanto de policiais quanto de traficantes – as melhores, de modelos mais avançados, fuzis e metralhadoras de nomes cabalísticos, para o comum das pessoas, P-90, MD-2, K-47, PT-92, mas pronunciados pelas crianças do morro com a familiaridade com que a dona-de-casa enumera marcas de sabão de pó. Ou, para ficar no filme, com a familiaridade com que, em outra cena, os mesmos meninos enumeram as grifes preferidas: jeans Company, camisetas Toulon, tênis Nike... 

Luz afirma que o negócio das armas é quase tão vultoso quanto o do narcotráfico. Os lucros de um e outro estariam muito próximos. "Por que se fabricam fuzis com 700 tiros por minuto?", pergunta. "Já não caiu o muro?" Tais armas, a comunidade internacional proíbe que se vendam à Líbia ou ao Exército Republicano Irlandês (IRA) – mas dão o ar de sua graça no Rio de Janeiro. Parte delas, os traficantes compram de policiais corruptos. Outra parte lhes chega por canais misteriosos. Como combater o tráfico de armas? Luz tem uma sugestão tão provocadoramente absurda quanto absurdamente lógica: fechar as fábricas. Não é isso o que os Estados Unidos fazem como política de combate ao narcotráfico? Não vão às origens do problema, com o objetivo de desmontar a produção no Peru e na Colômbia? Pois Luz reivindica uma intervenção nas fábricas de armas: "Quero fechar a fábrica da Colt que faz o AR-15, nos Estados Unidos. Quero fechar a fábrica do Sig-Sauer na Suíça". 

Vai-se encerrar esta página informando, à moda dos filmes, o que aconteceu depois com os personagens. Hélio Luz deixou a polícia e é hoje deputado estadual pelo PT no Rio de Janeiro. O traficante ajudado com a mesada de Salles, o hoje famoso Marcinho VP, foi finalmente preso na semana passada, depois de anos de busca, num morro do bairro carioca de Santa Teresa. João Salles foi indiciado pelas relações com Marcinho VP e mergulhou num inferno particular. Não mudou a vida nos morros. Os moradores do bairro da Tijuca viveram na semana passada mais uma das habituais noites de terror, com o tiroteio cerrado entre traficantes. Os meninos da favela continuam tão craques no nome das armas quanto no das grifes, confundindo ambas, acarinhando e embalando-as ambas no mesmo programa de vida – tênis Nike e HK 962, camiseta Toulon e PT-92.

Traficantes enfrentam a polícia - Rio - novembro de 2010